domingo, 3 de novembro de 2013

VALE A PENA LER

Luiz Gonzaga e as fronteiras do Nordeste


 
ANTONIO RISÉRIO

Costumo dizer que Luiz Gonzaga e Dorival Caymmi eram sociologicamente previsíveis. Não que fossem necessariamente acontecer, como efeitos de alguma lei inflexível que regesse as coisas do mundo. Mas porque os ambientes ecológicos e sociais eram propícios à aparição de um e do outro.
Caymmi nasceu num recôncavo negro-mestiço impressionantemente aquático, pleno de orixás. Um espaço de praias, rios, jangadas, saveiros, marcado pela poesia e pela música do samba de roda e dos terreiros do candomblé.

Não foi apenas por acaso que nasceu na Bahia, dona da maior fatia do litoral brasileiro, um poeta como ele -o raro e claro cantor das canções praieiras, cultivando um samba diverso do samba já estilizado do Rio de Janeiro. Gonzaga, por sua vez, nasceu entre jagunços e vaqueiros, na região da pecuária e da cultura do couro, marcada por longos períodos de seca.

Era esperável que as circunstâncias socioecológicas se gravassem ou se imprimissem um dia, funda e profundamente, nas criações poético-musicais de ambos (no caso de Gonzaga, incluindo seus principais parceiros, Humberto Teixeira e Zé Dantas).
E de fato elas se encarnaram. Não é por outro motivo que devemos tratar Caymmi como uma expressão estética concentrada da cultura tradicional litorânea da Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo. E Luiz Gonzaga como uma expressão estética concentrada do amplo e rico contexto em que se configurou a cultura nordestina -vale dizer, sertaneja.
 
PAISAGEM

Em "Os Sertões" (1902), Euclydes da Cunha contrapôs a lonjura sertaneja à extensão praieira. E o que ele vê no sertão é a paisagem atormentada. O "martírio da terra", que se deixa ler "no enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase desnudos, no contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de uma flora decídua embaralhada em esgalhos".
No interior desse martírio da terra é que ele vai situar o martírio humano, "reflexo da tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da vida".
O ser humano em questão é, obviamente, o sertanejo, "rocha viva da nacionalidade". É o Nordeste das "figuras de homens e de bichos se alongando quase em figuras de El Greco". Nordeste das ossadas esbranquiçadas. Dos "sertões de areia seca rangendo debaixo dos pés". Das "paisagens duras doendo nos olhos".
Um é o Nordeste barroco-canavieiro, místico-erótico, com suas praias e seus orixás. Outro é o Nordeste do gado e do couro, seco-ascético-milenarista, com procissões que se arrastam pedindo chuva.
O rei do baião pertence ao Nordeste messiânico da caatinga abrasada, do sol sinistro e do chão malcriado. "O sertão é ele", declarou Câmara Cascudo, à lembrança dos ritmos e das paisagens dos sertões pernambucanos.

É por isso que foi ele -e não Dorival Caymmi- a estrela das migrações nordestinas. Luiz Gonzaga se projetou no contexto dessa migração massiva, e desempenhou aí o papel de referencial de cultura, influenciando na coesão psicossocial do migrante e, graças ao sucesso que alcançou no sul, no processo de integração do "baiano" à nova realidade sudestina.
 
                 
 
Imagem do museu Cais do Sertão, em Recife



Circulando no eixo das cidades mais modernas do Brasil, tocando nas emissoras de rádio e gravando discos, entrou com o Brasil sertanejo país adentro. Ali onde milhares e milhares de camponeses passavam, de repente, à condição de urbanitas.

A história da cidade, no Brasil, foi marcada por isso. Por este deslocamento massivo da "Communitas" à "Gesellschaft", da comunidade à sociedade. Mais do que de uma transição brusca, trata-se de um corte profundo e radical.

O sujeito caía na roda-viva de um novo universo geográfico, climático, social e cultural. E jamais se dá sem dificuldade este salto em direção a uma outra ordem, em que passavam a vigorar direitos e modos associativos definitivamente dessemelhantes aos que as pessoas conheciam em seus lugares de origem.
Entrava em jogo, em São Paulo e em outras partes do país, e num horizonte de crise, toda uma teia de valores, padrões de comportamentos, estruturas de crenças, relações de trabalho etc. E tudo se desdobrando num meio muitas vezes hostil, em cujo âmbito se multiplicavam, por falar nisso, as "piadas de baiano".
 
FORÇA

Gonzaga desempenhou o papel nada insignificante, social e culturalmente, de força antidesagregadora. Atuando na dimensão dos signos -e em plano de massas-, ele trazia consigo um universo familiar aos nordestinos, com suas representações conhecidas e seus referenciais nítidos.
Desse modo, evitou que se esgarçasse ou se rompesse, na migração, o tecido original da cultura sertaneja nordestina. E ainda contribuiu para a sua afirmação nos bairros que hoje compõem o cinturão mais colorido e mais vivo da periferia da maior cidade que os brasileiros construíram.
Luiz Gonzaga viu que era possível reconstruir uma unidade na dimensão da cultura. E isto a partir de uma adequação não subordinada do subsistema cultural sertanejo às realidades em movimento numa nova esfera metropolitana.

Luiz Gonzaga foi o primeiro produto industrial que o Nordeste exportou. E se impôs. Conheceu herdeiros e futuros herdeiros. No final da década de 1950, podia olhar para trás e se congratular pela espetacular vitória cultural de seu projeto nordestino.

Depois disso, veio o declínio, no horizonte da cultura de massa de um país que se atualizava e procurava se afirmar no mundo como nação moderna. Era o Brasil sob o signo de Brasília.
No campo especificamente musical, o rock and roll, a bossa nova e, em seguida, a jovem guarda ocuparam o centro da cena.

Com o tempo, porém, Gonzaga renasceria para o país, na voz da novíssima geração da década de 1960. E o baião continuou dando frutos, e os frutos do baião são muitos, encarnando a cultura tradicional como a encarnação do novo.

Vale dizer, Luiz Gonzaga não se presentifica, no Brasil, como exótico ou folclórico. Ele não apenas retrata uma tradição. Ele a reinventa. Recria a cultura nordestina para inserir suas formas e conteúdos na sociedade urbano-industrial que então se configurava no país. E isto a partir de uma estratégia estética claramente definida.
 
CAIS

Daí se extrai a base, a forma-função arquitetônica e tecnológica do novo espaço que nasce em Recife para celebrar o sertão e Gonzaga, o Cais do Sertão, que se compõe entre o "vernacular" e o "high-tech". O rei do baião usou a tecnologia de ponta de sua época. Para homenageá-lo, acionaremos a tecnologia de ponta da nossa.

Mas sem tecnolatria. Bem vistas as coisas, um novo museu pode ser "high" ou "low-tech" -porque tecnologia alguma é capaz de fazer sozinha um museu. O que tem de estar no cerne e acima de tudo são o conceito e os conteúdos. Se não for assim, o que se vai ter, no máximo, sob a denominação de museu, não passará, na verdade, de um papel de parede tecnológico, de pura (ou impura) maquiagem, sem qualquer densidade ou intensidade cultural.

O Cais do Sertão terá um caráter simultaneamente histórico-antropológico, estético e "high-tech", referenciado no horizonte coetâneo da vida sociotécnica brasileira, com todas as suas implicações culturais. Sempre campo de uma dialética entre a tecnologia e tradição. A obra gonzaguiana chamava irresistivelmente nessa direção.

Afinal, Gonzaga foi a própria encarnação do diálogo criativo entre a tradição e a invenção, entre o velho e o novo. Ele recriou formas musicais arcaicas num produto inédito.
Trouxe a cultura tradicional nordestina para a sociedade e a cultura de massas. Nunca hesitou diante de nenhuma nova situação técnica. Atuou sem inibição nos "mass media", gravou discos, lidou com a publicidade e o marketing político (já desde a campanha presidencial de José Américo, em 1937), compôs jingles.

Ou seja: ele mesmo representa e significa essa dialética entre a invenção técnica e a criação popular tradicional. Um sujeito inteiramente à vontade tanto num estúdio de gravação, entre mesas de som, quanto no ambiente colorido das feiras nordestinas.

Natural que o Cais do Sertão tenha ido por esse caminho. Isso estava claro desde a formulação inicial do projeto, quando dizíamos, parafraseando Walter Benjamin, que Gonzaga foi a refundação da "poemúsica sertaneja" na época de sua reprodutibilidade técnica, num Brasil que começava a se modernizar, tomando o rumo urbano-industrial.

No Cais do Sertão o mundo de Luiz Gonzaga se revela. Ali onde as raízes deixam de estar na terra, para se projetarem no ar. Ele é um sertanejo -mas o mundo é o sertão e muito mais.
 
ANTONIO RISÉRIO, 59, é antropólogo e consultor especial do Cais do Sertão Luiz Gonzaga.

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