Luiz Gonzaga e as fronteiras do Nordeste
ANTONIO RISÉRIO
Costumo dizer que Luiz Gonzaga e Dorival Caymmi eram sociologicamente
previsíveis. Não que fossem necessariamente acontecer, como efeitos de
alguma lei inflexível que regesse as coisas do mundo. Mas porque os
ambientes ecológicos e sociais eram propícios à aparição de um e do
outro.
Caymmi nasceu num recôncavo negro-mestiço impressionantemente aquático,
pleno de orixás. Um espaço de praias, rios, jangadas, saveiros, marcado
pela poesia e pela música do samba de roda e dos terreiros do candomblé.
Não foi apenas por acaso que nasceu na Bahia, dona da maior fatia do
litoral brasileiro, um poeta como ele -o raro e claro cantor das canções
praieiras, cultivando um samba diverso do samba já estilizado do Rio de
Janeiro. Gonzaga, por sua vez, nasceu entre jagunços e vaqueiros, na
região da pecuária e da cultura do couro, marcada por longos períodos de
seca.
Era esperável que as circunstâncias socioecológicas se gravassem ou se
imprimissem um dia, funda e profundamente, nas criações poético-musicais
de ambos (no caso de Gonzaga, incluindo seus principais parceiros,
Humberto Teixeira e Zé Dantas).
E de fato elas se encarnaram. Não é por outro motivo que devemos tratar
Caymmi como uma expressão estética concentrada da cultura tradicional
litorânea da Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo. E Luiz Gonzaga
como uma expressão estética concentrada do amplo e rico contexto em que
se configurou a cultura nordestina -vale dizer, sertaneja.
PAISAGEM
Em "Os Sertões" (1902), Euclydes da Cunha contrapôs a lonjura sertaneja à
extensão praieira. E o que ele vê no sertão é a paisagem atormentada. O
"martírio da terra", que se deixa ler "no enterroado do chão, no
desmantelo dos cerros quase desnudos, no contorcido dos leitos secos dos
ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de
uma flora decídua embaralhada em esgalhos".
No interior desse martírio da terra é que ele vai situar o martírio
humano, "reflexo da tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia
geral da vida".
O ser humano em questão é, obviamente, o sertanejo, "rocha viva da
nacionalidade". É o Nordeste das "figuras de homens e de bichos se
alongando quase em figuras de El Greco". Nordeste das ossadas
esbranquiçadas. Dos "sertões de areia seca rangendo debaixo dos pés".
Das "paisagens duras doendo nos olhos".
Um é o Nordeste barroco-canavieiro, místico-erótico, com suas praias e
seus orixás. Outro é o Nordeste do gado e do couro,
seco-ascético-milenarista, com procissões que se arrastam pedindo chuva.
O rei do baião pertence ao Nordeste messiânico da caatinga abrasada, do
sol sinistro e do chão malcriado. "O sertão é ele", declarou Câmara
Cascudo, à lembrança dos ritmos e das paisagens dos sertões
pernambucanos.
É por isso que foi ele -e não Dorival Caymmi- a estrela das migrações
nordestinas. Luiz Gonzaga se projetou no contexto dessa migração
massiva, e desempenhou aí o papel de referencial de cultura,
influenciando na coesão psicossocial do migrante e, graças ao sucesso
que alcançou no sul, no processo de integração do "baiano" à nova
realidade sudestina.
Imagem
do museu Cais do Sertão, em Recife
Circulando no eixo das cidades mais modernas do Brasil, tocando nas
emissoras de rádio e gravando discos, entrou com o Brasil sertanejo país
adentro. Ali onde milhares e milhares de camponeses passavam, de
repente, à condição de urbanitas.
A história da cidade, no Brasil, foi marcada por isso. Por este
deslocamento massivo da "Communitas" à "Gesellschaft", da comunidade à
sociedade. Mais do que de uma transição brusca, trata-se de um corte
profundo e radical.
O sujeito caía na roda-viva de um novo universo geográfico, climático,
social e cultural. E jamais se dá sem dificuldade este salto em direção a
uma outra ordem, em que passavam a vigorar direitos e modos
associativos definitivamente dessemelhantes aos que as pessoas conheciam
em seus lugares de origem.
Entrava em jogo, em São Paulo e em outras partes do país, e num
horizonte de crise, toda uma teia de valores, padrões de comportamentos,
estruturas de crenças, relações de trabalho etc. E tudo se desdobrando
num meio muitas vezes hostil, em cujo âmbito se multiplicavam, por falar
nisso, as "piadas de baiano".
FORÇA
Gonzaga desempenhou o papel nada insignificante, social e culturalmente,
de força antidesagregadora. Atuando na dimensão dos signos -e em plano
de massas-, ele trazia consigo um universo familiar aos nordestinos, com
suas representações conhecidas e seus referenciais nítidos.
Desse modo, evitou que se esgarçasse ou se rompesse, na migração, o
tecido original da cultura sertaneja nordestina. E ainda contribuiu para
a sua afirmação nos bairros que hoje compõem o cinturão mais colorido e
mais vivo da periferia da maior cidade que os brasileiros construíram.
Luiz Gonzaga viu que era possível reconstruir uma unidade na dimensão da
cultura. E isto a partir de uma adequação não subordinada do subsistema
cultural sertanejo às realidades em movimento numa nova esfera
metropolitana.
Luiz Gonzaga foi o primeiro produto industrial que o Nordeste exportou. E
se impôs. Conheceu herdeiros e futuros herdeiros. No final da década de
1950, podia olhar para trás e se congratular pela espetacular vitória
cultural de seu projeto nordestino.
Depois disso, veio o declínio, no horizonte da cultura de massa de um
país que se atualizava e procurava se afirmar no mundo como nação
moderna. Era o Brasil sob o signo de Brasília.
No campo especificamente musical, o rock and roll, a bossa nova e, em seguida, a jovem guarda ocuparam o centro da cena.
No campo especificamente musical, o rock and roll, a bossa nova e, em seguida, a jovem guarda ocuparam o centro da cena.
Com o tempo, porém, Gonzaga renasceria para o país, na voz da novíssima
geração da década de 1960. E o baião continuou dando frutos, e os frutos
do baião são muitos, encarnando a cultura tradicional como a encarnação
do novo.
Vale dizer, Luiz Gonzaga não se presentifica, no Brasil, como exótico ou
folclórico. Ele não apenas retrata uma tradição. Ele a reinventa.
Recria a cultura nordestina para inserir suas formas e conteúdos na
sociedade urbano-industrial que então se configurava no país. E isto a
partir de uma estratégia estética claramente definida.
CAIS
Daí se extrai a base, a forma-função arquitetônica e tecnológica do novo
espaço que nasce em Recife para celebrar o sertão e Gonzaga, o Cais do
Sertão, que se compõe entre o "vernacular" e o "high-tech". O rei do
baião usou a tecnologia de ponta de sua época. Para homenageá-lo,
acionaremos a tecnologia de ponta da nossa.
Mas sem tecnolatria. Bem vistas as coisas, um novo museu pode ser "high"
ou "low-tech" -porque tecnologia alguma é capaz de fazer sozinha um
museu. O que tem de estar no cerne e acima de tudo são o conceito e os
conteúdos. Se não for assim, o que se vai ter, no máximo, sob a
denominação de museu, não passará, na verdade, de um papel de parede
tecnológico, de pura (ou impura) maquiagem, sem qualquer densidade ou
intensidade cultural.
O Cais do Sertão terá um caráter simultaneamente
histórico-antropológico, estético e "high-tech", referenciado no
horizonte coetâneo da vida sociotécnica brasileira, com todas as suas
implicações culturais. Sempre campo de uma dialética entre a tecnologia e
tradição. A obra gonzaguiana chamava irresistivelmente nessa direção.
Afinal, Gonzaga foi a própria encarnação do diálogo criativo entre a
tradição e a invenção, entre o velho e o novo. Ele recriou formas
musicais arcaicas num produto inédito.
Trouxe a cultura tradicional nordestina para a sociedade e a cultura de
massas. Nunca hesitou diante de nenhuma nova situação técnica. Atuou sem
inibição nos "mass media", gravou discos, lidou com a publicidade e o
marketing político (já desde a campanha presidencial de José Américo, em
1937), compôs jingles.
Ou seja: ele mesmo representa e significa essa dialética entre a
invenção técnica e a criação popular tradicional. Um sujeito
inteiramente à vontade tanto num estúdio de gravação, entre mesas de
som, quanto no ambiente colorido das feiras nordestinas.
Natural que o Cais do Sertão tenha ido por esse caminho. Isso estava
claro desde a formulação inicial do projeto, quando dizíamos,
parafraseando Walter Benjamin, que Gonzaga foi a refundação da
"poemúsica sertaneja" na época de sua reprodutibilidade técnica, num
Brasil que começava a se modernizar, tomando o rumo urbano-industrial.
No Cais do Sertão o mundo de Luiz Gonzaga se revela. Ali onde as raízes
deixam de estar na terra, para se projetarem no ar. Ele é um sertanejo
-mas o mundo é o sertão e muito mais.
ANTONIO RISÉRIO, 59, é antropólogo e consultor especial do Cais do Sertão Luiz Gonzaga.
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