A agonia do colesterol
Drauzio: Você não vai evitar ataque cardíaco só com remédio
Nunca me convenci de que essa obsessão para abaixar o colesterol às
custas de remédio aumentasse a longevidade de pessoas saudáveis.
Essa crença --que fez das estatinas o maior sucesso comercial da
história da medicina-- tomou conta da cardiologia a partir de dois
estudos observacionais: Seven Cities e Framingham, iniciados nos anos
1950.
Considerados tendenciosos por vários especialistas, o Seven Cities
pretendeu demonstrar que os ataques cardíacos estariam ligados ao
consumo de gordura animal, enquanto o Framingham concluiu que eles
guardariam relação direta com o colesterol.
A partir dos anos 1980, o aparecimento das estatinas (drogas que reduzem
os níveis de colesterol) abafou as vozes discordantes, e a classe
médica foi tomada por um furor anticolesterol que contagiou a população.
Hoje, todos se preocupam com os alimentos gordurosos e tratam com
intimidade o "bom" (HDL) e o "mau" colesterol (LDL).
As diretrizes americanas publicadas em 2001 recomendavam manter o LDL
abaixo de cem a qualquer preço. Ainda que fosse preciso quadruplicar a
dose de estatina ou combiná-la com outras drogas, sem nenhuma evidência
científica que justificasse tal conduta.
Apenas nos Estados Unidos, esse alvo absolutamente arbitrário fez o
número de usuários de estatinas saltar de 13 milhões para 36 milhões.
Nenhum estudo posterior, patrocinado ou não pela indústria, conseguiu
demonstrar que essa estratégia fez cair a mortalidade por doença
cardiovascular.
Cardiologistas radicais foram mais longe: o LDL deveria ser mantido
abaixo de 70, alvo inacessível a mortais como você e eu. Seríamos tantos
os candidatos ao tratamento, que sairia mais barato acrescentar
estatina ao suprimento de água domiciliar, conforme sugeriu um eminente
professor americano.
Pois bem. Depois de cinco anos de análises dos estudos mais recentes, a
American Heart Association e a American College of Cardiology, entidades
sem fins lucrativos, mas que recebem auxílios generosos da indústria
farmacêutica, atualizaram as diretrizes de 2001.
Pasme, leitor de inteligência mediana como eu. Segundo elas, os níveis de colesterol não interessam mais.
Portanto, se seu LDL é alto não fique aflito para reduzi-lo: o risco de
sofrer ataque cardíaco ou derrame cerebral não será modificado. Em
português mais claro, esqueça tudo o que foi dito nos últimos 30 anos.
A indústria não sofrerá prejuízos, no entanto: as estatinas devem até
ampliar sua participação no mercado. Agora serão prescritas para a
multidão daqueles com mais de 7,5% de chance de sofrer ataque cardíaco
ou derrame cerebral nos dez anos seguintes, risco calculado a partir de
uma fórmula nova que já recebe críticas dos especialistas.
Se reduzir os níveis de colesterol não confere proteção, por que
insistir nas estatinas? Porque elas têm ações anti-inflamatórias e
estabilizadoras das placas de aterosclerose, que podem dificultar o
desprendimento de coágulos capazes de obstruir artérias menores.
O argumento é consistente, mas qual o custo-benefício?
Recém-publicado no "British Medical Journal", um artigo baseado nos
mesmos estudos avaliados pelas diretrizes mostrou que naqueles com menos
de 20% de risco em dez anos as estatinas não reduzem o número de mortes
nem de eventos mais graves. Nesse grupo seria necessário tratar 140
pessoas para evitar um caso de infarto do miocárdio ou de derrame
cerebral não fatais.
Ou seja, 139 tomarão inutilmente medicamentos caros que em até 20% dos
casos podem provocar dores musculares, problemas gastrointestinais,
distúrbios de sono e de memória e disfunção erétil.
A indicação de estatina no diabetes e para quem já sofreu ataque cardíaco, por enquanto, resiste às críticas.
Se você, leitor com boa saúde, toma remédio para o colesterol, converse
com seu médico, mas esteja certo de que ele conhece a literatura e leu
com espírito crítico as 32 páginas das novas diretrizes citadas nesta
coluna.
Preste atenção: mais de 80% dos ataques cardíacos ocorrem por conta do
cigarro, vida sedentária, obesidade, pressão alta e diabetes. Imaginar
ser possível evitá-los sentado na poltrona, às custas de uma pílula para
abaixar o colesterol, é pensamento mágico.
Drauzio Varella é médico cancerologista. Por 20 anos dirigiu o
serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos pioneiros no
tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se
dedica ainda hoje. É autor do livro "Estação Carandiru" (Companhia das
Letras). Escreve aos sábados, a cada duas semanas, na versão impressa de
"Ilustrada".