Meio século depois do histórico discurso de Martin Luther King Jr., muitas de suas palavras continuam presentes em uma sociedade americana desigual. Especialistas e líderes do movimento de direitos civis nos EUA citam os avanços e os retrocessos
Em 28 de agosto de 1963, nas escadarias do Lincoln Memorial, em Washington, Martin Luther King Jr. revelou seu sonho a 250 mil pessoas que tinham acabado de participar da Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade. O discurso I have a dream ajudou a derrubar barreiras raciais e a moldar uma sociedade mais plural. No entanto, se uma bala não tivesse calado King, em 4 de abril de 1968, ele perceberia que muito de seu sonho ainda não passa de utopia. Ao contrário do que ele pregou, os Estados Unidos ainda não se levantaram para vivenciar o conceito de que todos os homens são iguais. Mas a eleição de Barack Obama, o primeiro presidente negro dos EUA, talvez seja a confirmação de que o país começa a julgar os seus filhos não pela cor da pele, mas pelo conteúdo do caráter. O Correio entrevistou especialistas, amigos de King e testemunhas da história sobre o papel que um dos pronunciamentos mais famosos de todos os tempos teve no movimento dos direitos civis. Apesar de apontarem uma série de avanços rumo ao fim da segregação, eles afirmaram que a questão racial segue um assunto espinhoso nos EUA. Segundo eles, a desigualdade entre negros e brancos é latente na economia, no sistema judicial e no próprio exercício da democracia.
A proporção de negros desempregados nos EUA (12,6%) é praticamente o dobro da de brancos (6,6%), quase a mesma média registrada em 1963. Uma família de brancos ganha em torno de US$ 54.620, enquanto uma formada por negros tem uma renda mensal de US$ 32.068. A recente absolvição de George Zimmerman pelo assassinato do afro-americano Trayvon Martyn, que estava desarmado, potencializou o risco de distúrbios raciais. “O doutor King não veria seu sonho se tornar realidade hoje, pois não vivemos numa era pós-racial”, afirmou à reportagem Cleveland Sellers Jr., 69 anos, um dos principais líderes do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos e amigo de Martin Luther.
Ex-diretor do programa do Comitê Não Violento de Coordenação Estudantil (SNCC, pela sigla em inglês) — organização que realizava manifestações no sul dos EUA —, Sellers diz que ele e outros ativistas presentes na Marcha sobre Washington acreditavam no fim da discriminação racial e da pobreza extrema dentro de 50 anos. “Meio século se passou e o que temos testemunhado é o retorno a muitas das leis, programas e políticas da década de 1960. Temos visto a volta de políticas de ação afirmativas e campanhas de supressão ao voto negro, que tinham se desbotado após as vitórias de nosso movimento. Formidáveis forças políticas gostariam de levar o país ao retrocesso racial”, comenta. “O doutor King ficaria extremamente desapontado por não termos feito um progresso firme em assegurar a inclusão de todos os cidadãos na democracia, algo garantido pela Constituição americana”, acrescenta. Em junho passado, a Suprema Corte dos EUA derrubou o 4º artigo da Lei de Direitos Eleitorais, firmada em 1965, que resguardava o direito ao voto das minorias.
Ódio
“Os Estados Unidos são mais tolerantes que há 50 anos, mas um reservatório profundo e duradouro de ódio racial e de ressentimento permanecem sob a superfície”, alerta Wayne Glasker, diretor do Programa de Estudos Afro-Americanos da Rutgers University, em New Brunswick (Nova Jersey). Vez ou outra, essa raiva emerge, em forma de confrontos de rua em grandes cidades, como Los Angeles. Segundo Glasker, cerca de 10 milhões dos 41 milhões de negros ainda vivem na pobreza. “Há um encarceramento em massa dos negros (1 milhão entre 2,3 milhões de presos). King ficaria de coração partido pelo assassinato de Oscar Grant (um afro-americano executado pela polícia, em 2009) ou ao tomar conhecimento de que Zimmerman ficou impune pela morte de Trayvor Martin. “Apesar de todo o progresso já feito, o povo negro segue perseguido pelo racismo”, lamenta o especialista.
Para Richard Lischer, professor da Duke Divinity School e autor de The Preacher King: Martin Luther King Jr. and the word that moved America (“O rei pregador: Martin Luther King Jr. e a palavra que moveu a América”), o sonho continua vivo. “Hoje, ele incluiria o fim da pobreza e da violência”, aposta. Ele explica que King ajudou a moldar um maior ativismo do negro na sociedade, algo impensável 50 anos atrás. “Muita coisa mudou nas interações diárias entre afro-americanos e brancos. As oportunidades para os negros no comércio, no governo e nas finanças cresceram exponencialmente”, observa. Lischer não tem dúvidas de que Barack Obama é o resultado direto de Martin Luther King Jr. “Se não existisse King, não haveria Obama”, admite. No entanto, ele afirma que o primeiro presidente afro-americano da história dos EUA desapontou os líderes negros, que esperavam mais empenho no combate à discriminação racial. Na próxima quarta-feira, Obama fará um discurso no mesmo local, em homenagem ao homem que sonhou com a igualdade.
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